quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A ANCESTRALIDADE DOS ORIXÁS NA DANÇA DO SAMBA

“Samba e macumba é a mesma coisa. O tambor que louva o santo, louva o samba”. Essa frase é de Carlos Cachaça, compositor mangueirense, dita numa entrevista à pesquisadora Marília Barbosa. As relações entre as culturas indígena, européia e africana, resultaram numa imensa variedade de ritmos e danças espalhados pelas diferentes regiões do Brasil, mas aqui vamos comentar um pouco sobre esta última – a africana - através das similaridades entre a dança dos orixás e a dança do samba executada por passistas do GRES Estação Primeira de Mangueira.

A dança do samba nos desfiles carnavalescos é executada pelos passistas que juntos formam uma ala com a função de representar e demonstrar um pouco da identidade daquela escola de samba através do samba no pé. A forma como as escolas de samba existem e se organizam muito se assemelha aos terreiros de candomblé, como foi verificado e descrito pela Professora Helena Theodoro, em seu livro “Escola de samba: um terreiro na avenida”.

Em novembro deste ano, durante o I Encontro de Departamentos Culturais, realizado no GRES Portela, a autora destacou com muita propriedade que “os passistas são, na escola de samba, os que levam a dança dos orixás a termo” demonstrando através da dança as principais características deles.

Considero que há pelo menos dois aspectos a serem considerados quando se pretende analisar a relação entre as danças dos orixás e a dança do samba: o primeiro deles é que cada orixá possui sua dança com movimentos característicos próprios que podem ser aprendidos e reproduzidos por qualquer um nos terreiros de candomblé ou nas academias de dança; o segundo é que, de acordo com as religiões de origem africana que cultuam os orixás, cada pessoa traz em si mesmo características do orixá a que pertence - o arquétipo -, e que serão manifestas em sua vida em diferentes momentos, especialmente na dança e particularmente no samba. É importante salientar a diferença entre esses dois aspectos porque, como afirma Muniz Sodré , “a resposta dançada de um indivíduo a um estímulo musical não se esgota numa relação técnica ou estética”, podendo ir muito além, como numa dramatização religiosa, já que é bem comum às culturas africanas a vinculação das formas expressivas com o sistema religioso.

Mangueira é uma escola de samba conhecida, tradicionalmente, pelo samba no pé sustentado principalmente por 3 alas: a ala de PASSISTAS com 40 casais, a ala “SENTE O SAMBA”, com 30 e a ALA DAS MUSAS, com 09 mulheres que já foram passistas, rainhas e princesas de bateria. Dentre estes, observei durante a temporada de ensaios para o carnaval 2015, quatro passistas com performances corporais e coreográficas absolutamente diferenciadas entre si: Georgia Gomes, Claudio Santos e Rafaela Bastos.

Georgia Gomes é uma mulata de 37 anos, mãe de um adolescente de 15 e trabalha como organizadora de eventos que envolvem samba e culinária. Samba desde criança. Na quadra da Mangueira, integrada a ala SENTE O SAMBA, executa uma dança que chama a atenção pela intensa energia e força dos movimentos. O samba no pé é “floreado” por movimentos corporais fortes e intensos, rápidos com a cabeça que elevam os cabelos ao alto repetidas vezes. Os braços estão sempre em movimentos no ar. E o sorriso? O sorriso brincalhão e debochado atrai o público para uma interação na dança. Os outros passistas ela convida ao duelo simulado na roda e o que se vê é a teatralização da origem lúdica do samba. O figurino deixa escapar seios e coxas. Georgia é um furacão. Georgia é filha de Iansã.

Iansã é considerada a rainha das tempestades, dos ventos e dos raios. Além da rapidez, das fugas e contrafugas, a dança de Iansã se destaca pelo movimento dos braços. A partir dos quais se desenvolve o "iruechim", uma ondulação flutuante de mãos com os braços erguidos, comumente chamada de “quebra-pratos”, simbolicamente relacionado à evocação de eguns (espírito dos mortos) . O Aguerê é o nome dado a coreografia de Iansã.

Luiz Claudio Santos tem 40 anos, é negro, alto, e desfila como passista há aproximadamente 20 anos. É um enfermeiro dedicado de temperamento quieto, discreto e teimoso. Tem personalidade forte e perseverante. É de poucos amigos, mas com esses poucos a amizade é duradoura. Do alto de seus 1.90 cm, o corpo tem uma pequena inclinação na região dorsal, fazendo com que pouco se veja seu rosto durante a execução de seu samba. A cabeça fica mais voltada para baixo, pernas alinhadas e os pés saem pouco do chão, mantendo uma cadência linear e com poucos floreios. Luiz Claudio é terra, Luiz Claudio é de Omulu.

Omulu é o Rei e Senhor da Terra. Tem em seu domínio as doenças e a cura de todas elas. Este orixá tem o corpo coberto de chagas e por isso apresenta-se coberto com palha da costa, especialmente o rosto que não deve ser visto. O opanijé é a coreografia de Omulu.

Rafaela Bastos tem 30 anos, é geógrafa e musa da Mangueira. É uma mulher com jeito de menina. A fala mansa e delicada não esconde a determinação que possui em seus diversos empreendimentos ligados ao meio ambiente e ao carnaval. Seu samba é altivo e malemolente, sedutor e cadenciado, expressos em requebros, movimentos de quadril e braços, elegantemente contidos. Rafaela no desfile de 2014 representou lindamente, o orixá Yemanjá.

Yemanjá é a Rainha das águas do mundo, a mãe de todos os filhos. Sua dança lembra o movimento das ondas do mar, fala da fluidez, de distribuição de cuidados e bens aos seus filhos, de germinação constantemente renovada. Quando se manifesta parece gemer ou chorar, executando giros grandes como as ondas e o vaivém do mar. Simula mergulhos, colocar as mãos na testa e na nuca alternadamente, evidenciando desta forma que ela é a Iyá Ori, a mãe da cabeça.

Sua dança é suave e sem movimentos ampliados ou de velocidade, o gestual das mãos lembra estar acariciando a água, e empurrando-a para trás do seu corpo, elemento do qual faz parte. Seu deslocamento é suave, ligeiramente contido, como se flutuasse ou caminhasse dentro da água, a dinâmica dos movimentos fica mais centrada ao eixo vertical do corpo, tudo acontece ao seu redor, no toque do hamunha. Rafaela Bastos é das águas, Rafaela Bastos será para sempre a Yemanjá da verde e rosa.

*Grupo Acauã (dança dos orixás: grupoacauan.blogspot.com.br

Um comentário:

  1. Belo texto,perfeitas as observações e comparações,grato por de alguma forma poder ajudar no seu trabalho,que nossos protetores espirituais nos abençoe sempre!!!bjus e axé!!!

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